outubro 09, 2007

Apresentação de A Ciência de Deus e O Sexo das Borboletas,
da autoria de Daniel da Costa, feita pelo escritor Mia Couto
no Teatro Avenida - Maputo

Sempre que apresento um livro, eu me vejo perante uma contradição quase insolúvel. E o conflito é o seguinte: apresentar um livro é, de algum modo, negar esse mesmo livro. Porque um livro não se apresenta, um livro não se explica. Sobretudo, se é um bom livro. Por respeito a esse pequeno tesouro se deveria evitar este momento que implica uma operação redutora e simplificadora daquilo que é um universo de infinitas possibilidades.

Mas existe o outro lado da medalha: as cerimónias de lançamento constituíram-se numa bênção a uma criatura nova, um filho de palavras que sai para um mundo que está perdendo a palavra. Estamos perante um objecto que é bem mais do que uma coisa: um livro é um companheiro de pensamento e de sonho. Neste caso, este livro é um amigo que é filho de um amigo.



Este é um livro estranho não apenas pelo título. Mas a vida é, ela mesmo, muito estranha. A primeira virtude dos textos de Da Costa é que eles estão em diálogo com a nossa realidade quotidiana. Mas esse diálogo vai para além daquilo que chamamos de “realidade”.

Tomemos, por exemplo, um estádio de futebol. Parece tratar-se apenas de uma entidade física. Mas o estádio é muito mais do que um recinto desportivo: é uma espécie de oráculo, um altar onde desfilam esperanças pessoais e colectivas, onde nações grandes e pequenas se juntam para festejar e chorar.

Daniel da Costa inventa um estádio de futebol em que uma mulher que irrompe jogo adentro perseguindo um jogador com uma frigideira. Há aqui uma inversão de espectáculo: o estádio de futebol é geralmente transportado para o interior do nosso mundo doméstico, invade a sala de estar da família onde o homem se senta enquanto a mulher humildemente o vai servindo. Pois aqui acontece o oposto: o universo doméstico se representa no recinto do estádio, subitamente convertido num palco de teatro onde se representam e se vingam as nossas maleitas mais íntimas.

Uma outra história é a de um homem que, num café de Matacuane, na Beira, luta contra os fantasmas e maldições de amor. Este homem, em pleno Parlamento, vota não pelo seu partido político mas vota nos seus próprios testículos. Isso parece ter um tom quase obsceno. Mas é aqui que a ironia de Da Costa nos empurra a pensar. Afinal, a maior obscenidade é ser político sem ter ideias, é ser deputado sem trazer propostas inovadoras, é ser cidadão sem ter vontade de mudar a realidade. Há quem fique aflito com a Dama do Bling, mas há uma pornografia que entra diariamente nos noticiários da TV que é a corrupção e a criminalidade generalizada. Os textos de Daniel falam destas pequenas hipocrisias do nosso quotidiano.

Enfim, só na aparência este livro pode ser lido como uma colecção de crónicas e contos. Há aqui a didáctica de uma nação cujo pilar principal é a sua própria diversidade. Daniel da Costa viveu essa diversidade. O nome dele devia ser corrigido. Ele devia ser: Daniel das Costas. Porque este cidadão é profundamente plural nas suas vivências. Ele está perfeitamente à vontade nas diferentes raças e tribos do nosso chamado mosaico cultural. É fácil dizer que Moçambique é composto por esse mosaico. Mas é mais difícil assumir que essa diversidade de culturas existe dentro de cada de nós. Daniel da Costa - que também é Nelson Xavier - é alguém que declara na fronteira que transporta esse contrabando dentro da sua escrita.

Este “A Ciência de Deus e o Sexo das Borboletas” retoma aquilo que é uma vocação quase esquecida na nossa literatura: a de visitar o nosso quotidiano por via de um voo muito especial que se chama ironia.

Em geral, nós rimo-nos para esquecer. Depois, acabamos chorando por lembrar demais. Mas o riso a que nos convida Daniel é um outro, quase oposto. Rimo-nos para aceitar que nós ainda não somos quem pensamos ser. Rimo-nos porque na pressa de queremos ser essa outra coisa, acabamos convertendo numa caricatura grosseira, acabamos sendo esse mesmo homem inacabado que Daniel fala do caso de um indivíduo que deixava sempre as coisas a meio. Nós estamos sempre a meio nesse processo de sermos alguém. Por muito que avancemos, falta-nos sempre a nossa outra metade.

O grande mérito de Daniel da Costa é este: nós somos sempre os seus personagens. Cabemos um pouco neles todos e, ao nos rirmos deles, estamo-nos rindo saudavelmente de nós mesmos. Esta é a terapêutica da escrita num tempo e num mundo carregado de angústias. É isto que sugerem estes textos: nós estamos doentes por nos levarmos demasiado a sério. Estamos doentes porque nos esquecemos que, dentro de nós, bate à porta um outro Eu, e esse Eu é sempre uma pessoa contraditória que sonha e que ama.

Este é um projecto assumido na escrita de Daniel da Costa. E é ele quem nos faz lembrar: o sonho e o amor são as duas únicas asas da vida.

E eu posso-vos garantir: essas duas asas estão reunidas nesta Borboleta em forma de livro.

Maputo, 13 de Setembro de 2007

1 comentário:

Mário Nunes disse...

E já agora convido-vos a todos a entrarem no Kafe Kultura, entrarem na máquina do tempo e visitarem Lourenço Marques ou Maputo, nos anos 20.
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